quinta-feira, novembro 29, 2007

"Ode ao olho"


"Poderoso és, entretanto
Uma pequena areia,
Uma pata de mosca,
Metade de um miligrama
De pó
Entrou no teu olho direito
E o mundo
Fez-se negro e baço,
As ruas
Tornaram-se escadas,
Os edifícios cobriram-se de fumo,
O amor, o filho, o prato
Mudaram de cor, transformaram-se
Em palmeiras ou aranhas.
Cuidado com os olhos!
Olhos,
Globo de maravilha,
Pequeno
Polvo do nosso abismo
Que extrai a luz das trevas,
Pérola
Diligente,
Magnético
Azeviche,
Pequena máquina
Rápida
Como nada ou ninguém,
Fotógrafo
Vertiginoso,
Pintor francês
Revelador do assombro.
Olho,
Tu deste nome
À luz da esmeralda,
Acompanhas
O crescimento
Da laranjeira
E controlas
As leis da aurora,
Medes,
Advertes o perigo,
Encontras o raio
De outros olhos
E arde no coração a labareda,
Como um
Milenário molusco
Encolhes-te
Ao ataque do ácido,
Lês,
Lês cifras de banqueiros
Cartilhas
De ternos meninos de escola
Do Paraguai,
de Malta,
Lês
Relações de nomes
E romances,
Abarcas ondas, rios,
Geografias
Exploras,
Reconheces
A tua bandeira
No remoto mar, entre os navios,
Conservas para o náufrago
O retrato
Mais azul do céu
E de noite
A tua pequena
Janela
Que se fecha
Abre-se por outro lado como um túnel
À indecisa pátria dos sonhos.
Eu vi um morto
Na pampa salitreira,
Era
Um homem do salitre,
Irmão da ideia.
Numa greve
Enquanto comia
Com os companheiros
Abateram-no e logo
No seu sangue,
Que de novo
Regressava às areias,
Os homens
Ensoparam
As bandeiras
E pela dura pampa
Caminharam
Cantando
E desafiando os verdugos.
Eu inclinei-me
Para tocar-lhe o rosto
E nas pupilas
Mortas,
Retratada,
Profunda,
Vi
Que tinha ficado
Bem viva
A bandeira,
A mesma que levavam
Ao combate
Os irmãos
Cantando,
Ali
Como no poço
De toda
A eternidade humana
ViA sua bandeira
Como fogo escarlate,
Como uma papoila
Indestrutível.
Olho,
Tu faltavas
No meu canto
E quando uma vez mais ao oceano
Apontei as cordas da lira
E da ode
Tu delicadamente
Mostraste
Como sou tolo: vi a vida, a terra,
ViTudo,
Menos os meus olhos,
Então
Deixaste penetrar
Sob as pálpebras
Um átomo de pó.
Enevoou-se-me a vista.
Vi o mundo
Enegrecido.
O médico
Por detrás dum escafandro
Apontou-me o seu raio
E deixou-me cair
Como numa ostra
Uma gota de inferno.
Mais tarde,
Pensativo,
Recobrando a vista e admirando
Os escuros, amplos
Olhos da mulher que adoro,
Apaguei a ingratidão com esta ode
Que os teus
Desconhecidos olhos
Lêem."

Pablo Neruda

terça-feira, novembro 27, 2007

Robert Wyatt - September the Ninth

http://www.youtube.com/watch?v=h4wyVTp9wh0

Flor Garduño







(fotografias de Flor Garduño)


"Entre os teus lábios
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.
No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.
Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.
Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.
Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha."

Eugénio de Andrade

domingo, novembro 25, 2007


Chegará um dia que olharei a lua amarela e gorda e não me lembrarei de ti?
Chegará um dia que não te direi que não te direi palavras?
Chegará um dia em meu corpo não notará a ausência do teu?
Chegará um dia que ao pensar em ti de não me desembrulhe toda em amor?
Virá um dia em que a dor sentida já não se sinta?
Virá um dia que a tua presença será só a fraterna e o teu abraço aconchego amigo?
Virá num dia de sol o meu coração sarado, a pulsar novo amor?
Dormi pouco nessas tuas enormes asas. Cuidei que eras um anjo, um princípe, um amor feliz.
Constato a inutilidade dos meus afectos...
Contudo ainda espero que um raio de luz ilumine a minha vida.

(Casa das Pombas a voar pelos quartos contigo)

Turner


Peace - Burial at Sea
1842
Oil on canvas
87 x 86.5 cm
Tate Gallery, London

sábado, novembro 24, 2007

"É verdade que o amor não se vê"


É verdade que o amor não se vê: o que eu vejo são os teus olhos, a ternura súbita das suas pálpebras, e o que elas abrem e escondem numa hesitação de luz. Eis o que define este sentimento: um intervalo uma distracção do tempo, a divina abstracção do infinito na transcendência do real."
(Nuno Júdice, Entre essência e existência, Cartografia de Emoções)

(fot. tirada de um filme. Greta Garbo na imagem)

quinta-feira, novembro 22, 2007

"Então sento-me à tua mesa"



"Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua sombra e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida - e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém,
teu silêncio de fogo e leite repõe a força
maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna."

Herberto Hélder

Enevoado amor voado pelas marés.
Lagôa de Óbidos

quarta-feira, novembro 14, 2007


"Mas que sei eu
Mas que sei eu das folhas no outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?
Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono
Nenhum súbito súbdito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra folha
qualquer. Mas eu que sei destas manhãs?
As coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha."
Ruy Belo