Epígrafe
De palavras não sei. Apenas tento
desvendar o seu lento movimento
quando passam ao longo do que invento
como pre-feitos blocos de cimento.
De palavras não sei. Apenas quero
retomar-lhes o peso a consistência
e com elas erguer a fogo e ferro
um palácio de força e resistência.
De palavras não sei. Por isso canto
em cada uma apenas outro tanto
do que sinto por dentro quando as digo.
Palavra que me lavra. Alfaia escrava.
De mim próprio matéria bruta e brava
expressão da multidão que está comigo.
José Carlos Ary dos Santos
Divagando por aí.... Pescar palavras, ideias, imagens com sentido, sem sentido, mas sempre, sempre com os sentidos à flor da pele. Às fotografias e textos que vou fazendo, igualmente junto coisas que gosto. De amigos, ou de pessoas que admiro. Por aqui viverá a textura da minha pele. Por aqui escorrerá a minha vida.
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domingo, janeiro 18, 2009
terça-feira, novembro 11, 2008
Dia de S. Martinho - "O Homem das Castanhas"
O Homem das Castanhas
Na Praça da Figueira,
ou no Jardim da Estrela,
num fogareiro aceso é que ele arde.
Ao canto do Outono,
à esquina do Inverno,
o homem das castanhas é eterno.
Não tem eira nem beira, nem guarida,
e apregoa como um desafio.
É um cartucho pardo a sua vida,
e, se não mata a fome, mata o frio.
Um carro que se empurra,
um chapéu esburacado,
no peito uma castanha que não arde.
Tem a chuva nos olhos e tem o ar cansado
o homem que apregoa ao fim da tarde.
Ao pé dum candeeiro acaba o dia,
voz rouca com o travo da pobreza.
Apregoa pedaços de alegria,
e à noite vai dormir com a tristeza.
Quem quer quentes e boas, quentinhas?
A estalarem cinzentas, na brasa.
Quem quer quentes e boas, quentinhas?
Quem compra leva mais calor p'ra casa.
A mágoa que transporta a miséria ambulante,
passeia na cidade o dia inteiro.
É como se empurrasse o Outono diante;
é como se empurrasse o nevoeiro.
Quem sabe a desventura do seu fado?
Quem olha para o homem das castanhas?
Nunca ninguém pensou que ali ao lado
ardem no fogareiro dores tamanhas.
Quem quer quentes e boas, quentinhas?
A estalarem cinzentas, na brasa.
Quem quer quentes e boas, quentinhas?
Quem compra leva mais amor p'ra casa.
Ary dos Santos
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quinta-feira, novembro 29, 2007
"Ode ao olho"

"Poderoso és, entretanto
Uma pequena areia,
Uma pata de mosca,
Metade de um miligrama
De pó
Entrou no teu olho direito
E o mundo
Fez-se negro e baço,
As ruas
Tornaram-se escadas,
Os edifícios cobriram-se de fumo,
O amor, o filho, o prato
Mudaram de cor, transformaram-se
Em palmeiras ou aranhas.
Cuidado com os olhos!
Olhos,
Cuidado com os olhos!
Olhos,
Globo de maravilha,
Pequeno
Polvo do nosso abismo
Que extrai a luz das trevas,
Pérola
Diligente,
Magnético
Azeviche,
Pequena máquina
Rápida
Como nada ou ninguém,
Fotógrafo
Vertiginoso,
Pintor francês
Revelador do assombro.
Olho,
Tu deste nome
À luz da esmeralda,
Acompanhas
O crescimento
Da laranjeira
E controlas
As leis da aurora,
Medes,
Advertes o perigo,
Encontras o raio
De outros olhos
E arde no coração a labareda,
Como um
Milenário molusco
Encolhes-te
Ao ataque do ácido,
Lês,
Lês cifras de banqueiros
Cartilhas
De ternos meninos de escola
Do Paraguai,
de Malta,
Lês
Relações de nomes
E romances,
Abarcas ondas, rios,
Geografias
Exploras,
Reconheces
A tua bandeira
No remoto mar, entre os navios,
Conservas para o náufrago
O retrato
Mais azul do céu
E de noite
A tua pequena
Janela
Que se fecha
Abre-se por outro lado como um túnel
À indecisa pátria dos sonhos.
Eu vi um morto
Na pampa salitreira,
Era
Um homem do salitre,
Irmão da ideia.
Numa greve
Enquanto comia
Com os companheiros
Abateram-no e logo
No seu sangue,
Que de novo
Regressava às areias,
Os homens
Ensoparam
As bandeiras
E pela dura pampa
Caminharam
Cantando
E desafiando os verdugos.
Eu inclinei-me
Para tocar-lhe o rosto
E nas pupilas
Mortas,
Retratada,
Profunda,
Vi
Que tinha ficado
Bem viva
A bandeira,
A mesma que levavam
Ao combate
Os irmãos
Cantando,
Ali
Como no poço
De toda
A eternidade humana
ViA sua bandeira
Como fogo escarlate,
Como uma papoila
Indestrutível.
Olho,
Olho,
Tu faltavas
No meu canto
E quando uma vez mais ao oceano
Apontei as cordas da lira
E da ode
Tu delicadamente
Mostraste
Como sou tolo: vi a vida, a terra,
ViTudo,
Menos os meus olhos,
Então
Deixaste penetrar
Sob as pálpebras
Um átomo de pó.
Enevoou-se-me a vista.
Vi o mundo
Enegrecido.
O médico
Por detrás dum escafandro
Apontou-me o seu raio
E deixou-me cair
Como numa ostra
Uma gota de inferno.
Mais tarde,
Pensativo,
Recobrando a vista e admirando
Os escuros, amplos
Olhos da mulher que adoro,
Apaguei a ingratidão com esta ode
Que os teus
Desconhecidos olhos
Lêem."
Pablo Neruda
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