terça-feira, junho 24, 2008

"Câmara Escura"





"Devagar,
Hora a hora,
Dia a dia,
Como se o tempo fosse um banho de acidez,
Vou vendo com mais funda nitidez
O negativo da fotografia.
E o que eu sou por detrás do que pareço!
Que seguida traição desde o começo,
Em cada gesto,
Em cada grito,
Em cada verso!
Sincero sempre, mas obstinado
Numa sinceridade
Que vende ao mesmo preço
O direito e o avesso
Da verdade."
Miguel Torga

segunda-feira, junho 16, 2008




(...) É desse lugar iluminado que, hoje, vos falo. Fui ter com um fotógrafo meu amigo e pedi-lhe para me retratar. Ele acendeu um foco de luz. Sentei-me no centro dele. A máquina disparou sem cessar. Gesticulei, abri os braços, mexi-me muito - como se soubesse que nunca mais o voltaria a fazer. Quando o meu amigo mergulhou o papel fotográfico no revelador, eu também mergulhei. Mas devo ter desmaiado uns segundos, talvez minutos, porque ao retomar consciência senti as pernas e os braços dormentes - e todo o meu corpo estava mole. Um véu de luz toldou-me a visão. Ceguei por instantes, mas não foi uma sensação desagradável. Depois, o corpo começou a ondear, a impregnar-se no papel e a coincidir com o retrato que o meu amigo fizera de mim. Segundos mais tarde uma pinça metálica tirava-me do revelador. Senti, então, a frescura da água - e toda a superfície da folha de papel, o meu novo corpo, brilhou. Em seguida deixei-me entorpecer na temperatura tépida, voluptuosa, do fixador. Tinha encontrado o esconderijo. (...)

AL BERTO

de O esconderijo do homem triste

Jacarandás



«No meio desta ansiedade, uma notícia ajuda a dormir em paz. Uma só certeza: a de que os jacarandás voltaram! Esta semana, apesar da seca e mau grado o clima errático, que provocaram um estado vegetativo desequilibrado, os jacarandás floriram. Nas Trinas e nas Praças, na D. Carlos I e no Salitre, na Burra e em Belém, apareceram, tímidos e frágeis. Já não era sem tempo. Lisboa precisa de cor. Isto precisa de esperança.»
António Barreto (Publico, 15-05-05)


"Tempo
de seus passos vindo
pelo tapete de roxas flores
dos jacarandás enfileirados na rua.
Hoje
é eterno o ontem
da silhueta de Maria
caminhando no asfalto da memória
em nebuloso pé ante pé do tempo.
... Todo o tempo
colar de missangas ao pescoço
sempre o tempo todo
suruma minha suruma da saudade.
Suruma daquela saudade
das flores dos jacarandás
nos passos de Maria."
José Craveirinha